Ocasionalmente eu noto em algumas pessoas a relutância de chamar uma pessoa com deficiência de “pessoa com deficiência” ou PCD. Mas isso é inclusão no mercado de trabalho? Não mesmo!
Normalmente são usados termos como “especial”, “pessoa com necessidades especiais”, “diferente”, “anjo azul”(no caso dos autistas) e eu resolvi fazer esse artigo para explicar por que:
a) essas substituições não funcionam;
b) não conseguir dizer PCD (ou “pessoa com deficiência”) seria, na verdade, um capacitismo velado.
A origem do termo PCD
O termo PCD teve origem na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência das Nações Unidas em 2006 (isso já faz 15 anos, merece uma festa de debutante) com a seguinte definição:
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Este é um jeito mais inclusivo de se referir às pessoas que fazem parte deste grupo de diversidade. Com a adoção do termo PCD, conseguimos visibilidade com mais dignidade, e ficamos mais próximos de uma sociedade mais acessível para este público, evidenciando as adaptações necessárias para que exista maior equidade nas interações e oportunidades (desde ir ao mercado comprar vários repolhos até conseguir um emprego, por exemplo).
Termos genéricos e o capacitismo nosso de cada dia
Primeiramente, ter uma deficiência não significa estar quebrado ou ser errado, muito menos é um material para insulto. Mas significa que suas vivências serão diferentes e que muito provavelmente você vai ter obstáculos que a maioria das pessoas não vai ter (tipo não conseguir frequentar lugares barulhentos).
Sim, isso é, de fato, ser diferente, mas “diferente” é um termo muito genérico. Diferente do que? De quem? Diferente tipo um pote de maionese e um dvd de “Pequena Sereia 2”?
Isso não nos dá muitas pistas sobre o que é essa diferença e muito menos descreve o que pode ser feito para resolver possíveis problemas dos envolvidos.
Como eu disse, é genérico demais e é como, por exemplo, tentar comprar uma samambaia, mas só descrever para o vendedor “algo verde que tem um formato”. Você quer um cacto de cerâmica? Uma pelúcia de dragão usando vestido? Um molho de salada?
A palavra “especial” tem o mesmo efeito, é genérica demais e não oferece nenhum tipo de descrição de verdade. Só a vaga noção de que a pessoa descrita é, de alguma forma, destoante de alguma norma.
Esse fator genérico é o que faz essas palavras tão populares na descrição de PCDs. Elas não são positivas nem negativas, ocupam um espaço que muita gente não sabe (e muitas vezes nem quer saber) com o que preencher.
É como se, depois de uma sessão de testes, você recebesse um email do seu QA apenas com a frase “esse é, definitivamente, um conjunto de arquivos de código”. Não ajuda muito, não é mesmo?
O problema com termos que infantilizam PCDs
Além dos principais termos genéricos, temos o problema dos termos que no fim das contas infantilizam as pessoas com deficiência.
Termos como “anjo” contribuem para o estigma de que pessoas com deficiências não podem se tornar adultos com vidas independentes e relacionamentos maduros.
Na verdade, esse tipo de termo implica que PCDs são seres sem aspirações ou objetivos para o futuro, feitos para serem admirados em sua resiliência quanto aos obstáculos de seu cotidiano (“se a história de um PcD que precisa de uma cadeira de rodas entrando em lugares sem rampa é inspiradora, a gente não precisa de rampas e sim de determinação!” é um exemplo de como isso normalmente se desenrola).
O problema com termos que generalizam
Já os termos genéricos tem um efeito diferente, porém também negativo: eles apagam pessoas com deficiências, tratando-as como se a deficiência fosse apenas um traço de personalidade ou uma cor de camiseta.
Assim apagando a necessidade de adaptações no local de trabalho, em lugares públicos ou em casa.
E o pior, elas dão margem para frases do tipo “mas todo mundo é um pouco autista” (me dizer isso de forma séria é uma forma muito eficaz de me fazer ficar com uma cara perplexa).
Nomes de deficiências usados como ofensas ou insultos
Ironicamente, o estigma de dizer que alguém é “uma pessoa portadora de uma (ou mais) deficiência(s)” não parece se aplicar a termos ofensivos ou a nomes de deficiências sendo usados como insultos, especialmente em âmbitos escolares ou de trabalho.
Estamos em 2021 e eu ainda tenho que chamar a atenção de amigos e familiares que nunca pensaram que alguns termos são muito capacitistas. E que, por exemplo, autista não é um insulto e quando uma criança usa assim, você não deveria deixar o incidente passar sem educá-la.
Então, o que fazer?
Nunca é tarde para começar a mudar hábitos (e não só os seus) e a repensar os termos que você usa no seu cotidiano para se referir a PCDs.
É fundamental conversar individualmente com PCDs sobre os termos que eles preferem, isso é algo pessoal. Eu, por exemplo, prefiro “autista”, mas algumas pessoas preferem “pessoa com autismo”, “pessoa com TEA (transtorno do espectro autista)” ou “pessoa no espectro”.
Inclusive, neste artigo eu conto um pouco da minha trajetória para aprender a programar como uma pessoa com autismo.
Como fazemos na Zup?
Aqui na Zup nós compreendemos a importância de atuar diretamente na quebra de vieses e paradigmas que colocam as pessoas com deficiência em uma condição generalista. Por isso, procuramos compreender as possibilidades de adaptação para um ambiente mais inclusivo e acessível. Além disso, atuamos na conscientização educacional sobre o tema com atribuição de responsabilidades.
Para isso, contamos com o auxílio da guilda ZuPCD. Formada por pessoas com deficiência e aliadas, sua atuação é muito importante, pois além de trazer considerações relevantes sobre as ações que desenvolvemos e executamos, também auxilia na integração de novas pessoas com um ambiente seguro para este grupo de afinidade.
Sabemos que ainda temos muito o que percorrer no caminho para uma Zup com mais diversidade e equidade, e estamos trabalhando na mudança da estrutura para um ambiente mais acessível.
PCD – uma sigla que você provavelmente deveria gravar
Espero que tenha ficado claro como usar o termo PCD é o mais correto e inclusivo ao se referir a nós. Nada de palavras e expressões que generalizam e reduzem a nossa experiência, e muito menos termos que você usaria para descrever um filhote de cachorro ou “inspiração” e “superação”.
Falar “pessoa com deficiência” traz uma série de contextos e lutas por direitos e você não deveria ter receio de usar o termo PCD.
E não se esqueça que por mais que existam diversos grupos que apoiam PCDs e compartilham conteúdo regularmente, ao falar com uma pessoa com deficiência, pergunte as preferências dela. Se você é responsável por uma criança com uma deficiência, procure representatividade, fale com adultos que são PCDs.